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sábado, 6 de junho de 2009

Os Monstros da Razão Adormecida

O filme ‘Adeus Minha Concubina’, com crueza e sensibilidade raras, mostra o esvaecer da arte enquanto expressão pura da alma humana. Retratados em dois momentos distintos da história da China, dois protagonistas, ainda crianças, literalmente apanham para se tornarem sensíveis à majestosidade da ópera que dá o nome ao filme. Quando afinal suas almas estão tão abertas ao lírico quanto fechadas estão as feridas das surras, surgem o intelectual Chen-Tu-xiu, o educador Peng-Pai, o ativista político Mao Tse-tung e o Governo do Povo. A Ópera de Pequim é então condenada como estandarte da ‘desigualdade da elite imperial’ e muitos atores e patronos das artes são condenados à morte como traidores do povo. Aos dois protagonistas resta observar tudo – dessa vez com os olhos treinados a verem o belo, portanto, mais trágicas suas sinas.

Tortuosamente, meus pensamentos voltaram a esse filme quando da recente manisfestação dos professores estaduais em São Paulo. Acho que foram as bandeiras vermelhas a tremularem em meio à multidão. Houve também os cartazes – tais como no filme, com mentiras, inverdades e meias-verdades (ou meias-mentiras?). Mas meu horror proveio mesmo, como quando assisti ao filme, da clara manipulação política feita a partir do descontentamento de uma classe trabalhadora – no caso recente, a que ‘forma cidadãos conscientes’. Uma coisa é exigir um salário justo para os nobres profissionais responsáveis pela formação de todos os outros profissionais que virão. Outra é pregar a ignorância e o desaviso, ferramentas de alarde, usando esses mesmos profissionais e, ainda pior, com o consentimento deles.

Vamos aos ditos (gritados, na realidade) e aos fatos. São Paulo não é um dos Estados que pior paga os professores. Dos 26 estados e Distrito Federal, ocupa o entre o 8º e o 11º lugar. Possui a maior arrecadação – e a maior população e problemas a resolver – mas também é o que mais tem que repassar rendimentos ao Governo Federal, que por sua vez repassa aos outros Estados segundo seus critérios. O resultado é que o Estado de Roraima, com seu irrisório Produto Interno Bruto (último lugar na lista do PIB, por sinal) e 99% de seu território sendo reservas indígenas e áreas de preservação ambiental (o menos povoado, portanto), é o que melhor paga seus professores, seguido pela Paraíba (19º lugar no PIB), Tocantins (24º), Acre (26º), Sergipe (21º). E, não mencionado na manifestação, os professores públicos ganham em média mais do que os particulares, tendo uma estabilidade que seus colegas não possuem – ou são bons professores ou terão a porta da rua como serventia da casa – e aposentadoria integral em menos tempo de trabalho (Folha de SP, 19/1/2008).

Eu chequei as informações nos cartazes expostos na manifestação e eles, professores, deveriam ter feito o mesmo. Foi simples, não gastei mais do que 30 minutos em minha muito lenta conexão com a Internet. Com isso não quero dizer que o salário do professor não é uma vergonha, pois é. Professor, da rede pública ou privada, de Norte a Sul, merece ganhar mais. Entretanto, ganhar pouco não significa virar marionete de ideologias, sejam elas de esquerda ou direita. Não significa contribuir, com sua massa física, para movimentos políticos de qualquer natureza. Ainda mais por serem os professores o último refúgio de luz em meio às trevas da ignorância. “O adormecer da razão gera monstros” (Goya). Pois bem. Tendo assistido “Adeus Minha Concubina” e visto a manifestação dos Professores do Estado de São Paulo, comecei a ter medo de canção de ninar.